Em 1488, quando Leonardo Da Vinci iniciou a sua série de esboços que resultaria na obra *Cidade Ideal,* ele não imaginava o legado que deixaria a arquitetos e urbanistas cinco séculos depois, a respeito da relevância de se buscar um **planejamento urbano adequado** para resolver problemas estruturais e mitigar os impactos sofridos por quem vive nas grandes cidades.
Os desenhos de Da Vinci carregavam conceitos absolutamente modernos: **uso das melhores técnicas de construção disponíveis, sustentabilidade aplicada na prática e a percepção popular na elaboração das soluções.**
*Cidade Ideal* propunha uma Milão menos caótica, livre dos efeitos negativos de sua superpopulação (100 mil pessoas, na época), com falta de saneamento básico e imersa em epidemias. A visão do artista, que viveu ali por 17 anos, foi o ponto de partida da obra que, associada a sua genialidade como cientista e inventor, criou soluções passíveis de uso nos dias de hoje: arcadas nas fachadas do prédios para aumentar a iluminação natural e a circulação do ar; rede de canais de água em declive para ajudar na limpeza urbana.
Quase meio milênio depois e estes requisitos – **tecnologia, sustentabilidade e participação da sociedade** – formam o **tripé essencial** para suportar a transformação positiva e necessária das áreas urbanas do planeta no século 21.
Techcities
Em boa parte das grandes cidades do mundo, a tecnologia já se faz presente no dia a dia dos seus moradores. Sensores monitoram a movimentação de pessoas, radares inteligentes controlam o trânsito, satélites meteorológicos previnem sobre o clima, drones mapeiam os bairros e a realização de obras – legais ou ilegais –, muralhas digitais protegem o perímetro e plataformas de gestão de dados permitem visualizar o impacto das políticas públicas na cidade.
Com recursos tecnológicos cada vez mais avançados, aumentou-se a precisão dos quadros de **consciência situacional baseados em dados.** Nunca antes na história das cidades os gestores públicos tiveram à disposição tantas informações e ferramentas para agirem com total assertividade em suas tomadas de decisão em tempo real ou a partir do histórico de dados.
Estimulada a participar do processo, a indústria da tecnologia tem investido pesado no desenvolvimento de soluções a partir do **IoT, machine learning, inteligência artificial e edge computing** aplicáveis ao cotidiano urbano. Com isso, cresce a possibilidade das cidades se tornarem inteligentes, sejam elas projetadas do zero ou adaptadas – com êxito – ao uso da inteligência de dados.
O resultado é um ganho exponencial na qualidade de vida dos cidadãos destas localidades, que passaram a desfrutar de espaços públicos mais amigáveis, de mais modais alternativos de transporte como as bicicletas públicas e compartilhadas, de maior segurança com sistemas de vigilância integrados, de menor impacto ambiental a partir do uso de sistemas que otimiza o consumo de energia e uma antecipação das necessidades futuras: smart grids, quadros elétricos conectados, iluminação pública sob demanda via sensores, sistema já muito utilizado na França, Noruega e Espanha, por exemplo.
Do ponto de vista do planejamento, as ferramentas digitais como o Big Data e a modelagem em 4D ampliaram os horizontes com formatos mais dinâmicos de análise, onde a sazonalidade e a dimensão temporal passaram a ser consideradas.
Com estes novos recursos, é possível projetar melhorias no sistema de transporte público, tornando-o mais resiliente e capaz de suportar o aumento de demanda ou a sua diminuição, como foi o caso durante a pandemia de 2020; aprimorar o consumo de energia e recursos naturais, em alinhamento com as preocupações climáticas; qualificar a ocupação do solo, criando zonas mistas (residenciais e comerciais) que atendam ao conceito de “cidades de 15 minutos”, como o projeto idealizado pela prefeitura de Paris e que está em desenvolvimento, aproximando os cidadãos de suas necessidades básicas de moradia, trabalho e lazer, evitando, assim, o deslocamento em massa de pessoas das periferias para o centro, diminuindo também a postão no sistema de transporte público.
Importante destacar que, conforme assinala o estudo *Smart Cities – Cidades Inteligentes nas Dimensões do Planejamento, Governança, Mobilidade, Educação e Saúde, “*o que torna um projeto urbano ou um plano inteligente não é a sua arquitetura sofisticada ou planejamento mestre complexo, mas as colaborações qualitativas e quantitativas que o sistema urbano planejado ou projetado pode estabelecer com os subsistemas relacionados – inclusive os tecnológicos –, para salvaguardar a sustentabilidade e o uso correto das informações das cidades, promovendo o desenvolvimento urbano e melhorando a resiliência”. Portanto, a **qualidade e a quantidade dos dados** coletados e a forma como eles são processados, analisados e comunicados pelos agentes públicos são fundamentais para a geração dos insights que permitirão a implantação bem-sucedida das mudanças desejadas.
Essa visão contribui ainda com a criação de **bancos de dados públicos,** com informações abertas a todas as pessoas interessadas em conhecer a performance da cidade em diferentes setores. Dessa maneira, o poder público entrega mais transparência à governança, dá ciência à população do que acontece em sua própria vizinhança e abre um vasto campo para empreendedores privados desenvolverem soluções para os problemas daquela área urbana. Afora todo o benefício de coesão social evidente desta iniciativa – onde os grupos de cidadãos sentem-se pertencentes e atuantes no debate das políticas públicas –, está embutido também um estímulo vigoroso na economia, sobretudo dentro do conceito circular, com a criação de aplicativos, serviços e produtos que privilegiem os atores locais no fomento das atividades comerciais.
O fator sustentabilidade
A **agenda sustentável** também deve estar presente na elaboração do planejamento urbano moderno. Pudera, o impacto das cidades no aquecimento global e nas mudanças climáticas já em curso – associado ao crescimento exponencial das populações nestas áreas – coloca o tema em caráter de prioridade absoluta.
Dados de estudo recente da ONU indicam que, até 2030, existirão no planeta 43 megacidades – aquelas com mais de 10 milhões de habitantes. E até 2050, **70% das pessoas viverão em áreas urbanas.**
Diante deste cenário que se avizinha, repensar as cidades para que respeitem o meio ambiente, criem condições para o desenvolvimento econômico e protejam os seus cidadãos é a única saída para um modo de vida urbano mais saudável e sustentável.
De acordo com os pesquisadores que assinaram o relatório IESE Cities in Motion Strategies 2018, da Universidade de Navarra, estas estimativas das Nações Unidas denotam o tamanho da importância de um planejamento estratégico a fim de atender a todas as dimensões da vida nas cidades: mobilidade, transporte, governança, capital humano, entre outras. Todas elas estariam intimamente ligadas à sustentabilidade e, uma vez mal atendidas, trariam prejuízos à qualidade de vida no médio prazo, impactando também na atração de investimentos.
O planejamento urbano moderno deve criar cidades mais compactas, bem conectadas e que ofereçam acesso facilitado aos serviços públicos. E, neste mix de prioridades, deve ser incluído também o drive da sustentabilidade.
Conforme sugere a própria ONU, o desenvolvimento sustentável de uma cidade é definido pelo encontro entre o **atendimento das necessidades do presente sem o comprometimento das demandas das futuras gerações.** Isso se refere, sobretudo, à questões relacionadas ao meio ambiente, como o controle efetivo da poluição, o aumento das áreas verdes e jardins nos espaços urbanos dos espaços, a gestão dos resíduos, a garantia do fornecimento de água, a produção de energia alternativa e limpa, a ocupação planejada do solo, o apoio à arquitetura sustentável e a existência de políticas públicas que considerem as mudanças climáticas no seu processo de criação.
Em todas estas abordagens, a presença da tecnologia volta a ser fundamental. É por meio de soluções e inovações tecnológicas que a administração destes indicadores será possível de ser realizada com eficiência e agilidade.
A transformação digital do novo urbanismo
Neste contexto, fica clara a importância da tecnologia no tripé que alicerça o planejamento urbano moderno. No âmbito da **participação social,** com o aumento da importância da voz da população como ator e tomador de decisão, com poder no processo de definição das políticas resolutivas e na postura vigilante em relação a atuação dos governantes.
Atualmente, existe uma grande diversidade de iniciativas neste sentido. Uma delas é o Citizinvestor, plataforma criada na Flórida (EUA) que autoriza os cidadãos a definir e participar do financiamento de projetos locais pré-aprovados pelos governos, mesmo sem verba, como a construção de jardins públicos ou um estacionamento para bicicletas.
Na Inglaterra, quando uma “e-petição” é assinada por mais de 100 mil eleitores, um debate é organizado na Câmara das Comuns para avaliar o tema. Na Finlândia, o site principal de [e-governo](https://www.otakantaa.fi/fi/) exibe propostas de lei que podem ser apresentadas ao governo a partir de 50 mil assinaturas. Algo semelhante ocorreu recentemente na França, onde uma petição online publicada no site Change.org deu início a uma série de reflexões que culminaram na votação de uma lei sobre desperdício alimentar.
Aqui vale destacar também a **importância da comunicação no processo de empoderamento do cidadão.** Portais eletrônicos com informações públicas atualizadas, aplicativos gratuitos para prestação de serviços, ouvidorias digitais para reclamações e sugestões, veículos de comunicação locais, com informações úteis a respeito da municipalidade, todo um ecossistema que mantenha os moradores a par do que acontece ao seu redor. Um exemplo é o site [Open Spending](http://openspending.org/) que apresenta os fluxos financeiros dos governos desde o México à União Europeia, passando por Uganda. Para tanto, investimentos em comunicação digital e, claro, educação, são essenciais.
Na questão da **sustentabilidade,** promovendo o alinhamento das cidades à agenda ambiental – com serviços que apoiem a gestão de resíduos, água, energia elétrica por parte dos próprios moradores –, no fomento da economia circular e na própria melhoria da condição social da população dos centros urbanos.
O **monitoramento dos riscos de eventos climáticos** – a partir da integração de tecnologias como IoT, inteligência artificial, drones, satélites e edge computing – é outro ponto fundamental. Antecipar catástrofes naturais geradas pelo aquecimento global também faz parte do novo planejamento das cidades.
**LEIA MAIS:** [A tecnologia na gestão de riscos de eventos climáticos](https://bit.ly/2IbdLf0)
E, por fim, na **aplicação de soluções tecnológicas** que melhorem a vida nas cidades de forma efetiva. Na prática, uma infraestrutura digital que permita a integração das diversas dimensões do cotidiano urbano: saúde, educação, segurança, mobilidade, sistema viário, agentes econômicos, logística.
Cidades inteligentes, mais do que uma tendência, são uma necessidade. Policêntricas, humanizadas, organizadas, seguras e eficientes, com serviços diferenciados como e-learning, e-business, atendimento de saúde pública virtual e outros que respondam prontamente aos anseios do nosso tempo e as necessidades de seus moradores. Válido também pensar em um futuro com cidades – por quê não? – urbanisticamente mais belas, onde vivenciá-las seja motivo de prazer, não de pesar. Como propôs Da Vinci.