A descarbonização do transporte é um dos temas mais frequentes nos debates sobre as mudanças climáticas. A solução passa por tornar a gestão pública mais inteligente e integrada a partir do uso da ciência de dados.
Para Roberto Speicys, CEO e cofundador da Scipopulis, a adoção de ferramentas tecnológicas tornará possível monitorar o meio ambiente, as cidades e as atividades humanas, a fim de extrair métricas que definirão as ações a serem executadas.
“A análise de dados fornece subsídios para o administrador público na tomada de decisões, ajudando no planejamento das ações e dando mais transparência a todo o processo, mostrando o impacto positivo para as pessoas”, acredita Speicys.
Pelo desenvolvimento da plataforma Trancity, de gestão de dados para frotas de ônibus, a Scipopulis foi uma das 18 empresas e organizações selecionadas pela The CivTech Alliance a participar do Global Scale-Up Programme, que tem apoio da ONU e visa apresentar soluções a este e outros problemas atuais que impactam no clima. As empresas mostrarão os seus trabalhos durante a COP26, a Conferência das Partes organizada pelas Nações Unidas para debater o clima, que acontece de 31/10 a 12/11 em Glasgow, Escócia.
Às vésperas de embarcar para o evento na Europa, ele concedeu esta entrevista ao jornalista Fabiano Mazzei, onde abordou ainda a transição energética do transporte público e defendeu a distribuição de oportunidades nas cidades a fim de reduzir o impacto ambiental. Confira.
Fabiano Mazzei: Olá, seja muito bem-vindo, seja muito bem-vinda a mais um episódio do podcast greenTALKS. Lembrando que este conteúdo está disponível aqui no Spotify, no YouTube, em nossas mídias sociais e no blog Insights.
O episódio de hoje vai tratar de um tema bastante debatido na COP26, na Escócia, que é a descarbonização do transporte para mitigar o impacto dessa atividade sobre o clima. Para comentar sobre este assunto, convidamos Roberto Speicys, CEO e cofundador da Scipopulis, que já esteve aqui no podcast e volta para compartilhar os seus conhecimentos conosco novamente. Obrigado, Roberto, por mais esta participação aqui no podcast.
Roberto Speicys: Imagina, Fabiano, eu que agradeço o convite. É sempre um prazer conversar com você.
Fabiano: Muito bem. Vamos começar, então, falando da Scipopulis que está neste momento participando de um programa apoiado pela ONU para propor soluções a diversos problemas relacionados à vida nas cidades. Você poderia contar um pouco para gente o que é esse programa e quais as oportunidades que ele pode trazer para a empresa?
Roberto: Claro. Esse programa é bem legal e interessante. Está sendo bem recompensador participar. É um programa que foi organizado pela ONU e pelo governo da Escócia – que está organizando a COP 26 – em paralelo com a conferência e o objetivo deles é identificar no mundo todo empresas inovadoras que estão desenvolvendo tecnologias que podem ajudar a combater algumas ameaças ao meio ambiente e alguns fatores de mudança climática que vão ser discutidos justamente na conferência na COP 26.
Participamos de um processo de seleção mundial e a nossa empresa foi selecionada. Esse processo foi organizado por uma organização se chama se The CivTech Alliance, que é uma rede de organismos de Inovação em governos de diversos países por todo o mundo. Essa rede selecionou algumas empresas inovadoras para esse programa de Scale-Up cujo objetivo é permitir que as escolhidas possam ganhar escala nas suas soluções, realizando pilotos e demonstrações das tecnologias em diversas cidades do mundo – e não só nas regiões onde elas atuam.
Então, na prática, esse programa coloca a gente em contato com membros do governo, ambientes de inovação e investidores de diversos países para demonstrar e falar um pouco da nossa tecnologia, da empresa e demonstrar o que a gente está fazendo. Também conseguir contatar os responsáveis por implementar as pautas ambientais em diversos países.
Tivemos reuniões com equipes da Espanha, Dinamarca, Alemanha, Polônia, Estônia, Lituânia, Escócia, Austrália, Estados Unidos e do Brasil também. Falando com as pessoas envolvidas na descarbonização do transporte na Alemanha, por exemplo, entendendo quais são as metas, os desafios e as soluções que eles estão procurando. Então, os benefícios para gente são vários: por um lado, a gente conhece a realidade de diversos países que estão em estágios diferentes nesse processo de descarbonização do transporte – e consegue aprender um pouco com as experiências dos outros; depois, trazer essas experiências aqui para o Brasil e América Latina, onde a gente atua; e, por fim, abrir outros mercados para a empresa.
A possibilidade de fazer um piloto da nossa tecnologia num país da Europa é espetacular. E já temos contatos e o caminho para chegar nas pessoas que são os potenciais usuários da nossa tecnologia. Está sendo um programa bem interessante de troca, de bastante apresentação e discussão sobre esses temas, mas também de expansão da nossa rede de contatos para diversos países onde a gente ainda não atua.
Fabiano: É um networking poderoso pelo visto, uma troca de experiências muito rica com o mundo inteiro.
Roberto: Sim, falamos com o responsável por meio ambiente na empresa de ônibus de Vilnius, na Lituânia – o tipo de pessoa com a qual a gente nunca teria contato – e conversamos por e-mail, telefone, ficamos em contato com ele depois e vamos fazer um piloto na sua cidade, por exemplo
Fabiano: Muito bom! Tem a história dos desafios que foram proposto: o programa colocou desafios para que esse grupo resolvesse. Poderia falar mais a este respeito?
Roberto: Eles selecionaram três temas que são bastante presentes na discussão de mudanças climáticas: o desperdício de alimentos, a resiliência das cidades e a descarbonização do transporte. Eles procuraram empresas que já estão atuando nesses temas para colocá-las em contato com os diversos países e participantes do programa.
Fabiano: Neste sentido, a Scipopulis já conta com uma plataforma que atua nisso. Você poderia falar sobre isso?
Roberto: A gente desenvolveu o Trancity que faz diversas análises de dados relacionadas ao transporte público. Desenvolvemos nos últimos anos o modelo de Estimativa de Emissões de Poluentes do Transporte Público. Então, o que é interessante aqui é que, baseado no nosso modelo de dados, a gente consegue identificar ou estimar a quantidade de CO2 que foi gerada por um ônibus a partir da movimentação real daquele veículo na cidade a cada dia.
Se há um ônibus que usa uma tecnologia que polui um pouco mais e que, em determinado dia, ele circulou menos, a frota ficou um pouco mais limpa. A gente consegue identificar isso nos nossos gráficos e análises. Durante a pandemia, por exemplo, conseguimos identificar exatamente qual foi a diminuição das emissões causada pela redução de frota e pelo ganho de velocidade dos ônibus. A ferramenta, além de analisar os dados de operação de qualidade do serviço de transporte público, ela também gera diversas métricas em relação ao impacto ambiental do transporte público que ajudam o gestor público a identificar as linhas que mais poluem na cidade, as áreas mais afetadas por essa poluição gerada pelo transporte público, permitindo ao gestor acompanhar a redução das emissões à medida que o ônibus elétricos vão começando a operar na rede.
Também ajuda a estimar a quantidade de energia necessária para operar uma linha que já existe com ônibus elétricos. Ajuda a identificar as linhas que você não vai conseguir operar com o ônibus elétrico com a tecnologia atual porque elas têm muitas subidas ou elas têm um perfil de operação que não é adequado para a tecnologia atual de ônibus elétrico.
É importante entender que o modelo elétrico funciona de um jeito diferente que o ônibus a diesel. Então, o processo de trocar a frota a diesel por uma elétrica não é simplesmente de tirar um veículo, colocar o outro e continuar operando do mesmo jeito. Não é assim. Em algumas linhas, vai precisar mudar o trajeto da linha para poder operar o ônibus elétrico. Em outras, vai ter que adicionar o ônibus na frota porque se você operava com dez ônibus movido com combustível fóssil, talvez precise de 12 ou 14 ônibus elétricos.
O ônibus elétrico tem menos autonomia: ele tem que voltar mais vezes para garagem. Então, precisa circular mais veículos na sua frota. Uma questão importante é sobre o tempo de vida de bateria e as formas de carregá-las nos ônibus. É preciso que prolonguem o tempo de vida da bateria, evitando que se troque de forma desnecessária este equipamento de energia ao longo de um contrato. É algo que pode comprometer o equilíbrio financeiro.
Então, não basta só também planejar a operação com ônibus elétrico: tem de monitorar essa operação para ter certeza de que as suas variáveis não estejam mudando ao longo do tempo e impactando justamente a sua operação planejada e o equilíbrio financeiro dos contratos.
Fabiano: Comentando tudo isso, fica clara a quantidade de dados e informações que uma plataforma como o Trancity é capaz de processar – importante, dada a necessidade de análises em tempo real. Então, qual o papel dessa análise de dados na descarbonização do transporte público?
Roberto: Digamos que sejam três. Um papel é de gerador de informações e subsídios para ajudar no planejamento dessa transição energética da frota. É importante também lembrar de um detalhe: os contratos de ônibus são longos, de 10, 20 anos. E você não consegue normalmente alterar o perfil de veículo que está operando na rede de transporte público durante um contrato porque ele já está em execução e foi feito a partir de algumas premissas, inclusive de investimento em renovação, que não se adequam e não são compatíveis com o ônibus elétrico.
Então, quando estes contratos foram firmados há 20 anos, ninguém pensou no custo que seria substituir o ônibus a diesel por um ônibus elétrico. Existe também uma janela de oportunidade que é justamente quando vencem os contratos de transporte da cidade e ela vai preparar novos contratos.
Estes contratos já têm de levar em conta essa transição energética. A ferramenta tem como um dos objetivos ajudar a fornecer os dados e os subsídios para planejar essa mudança e preparar os novos contratos de transporte que estão vencendo nas cidades e vão começar a serem renovados com esse foco e eletrificação. Outro papel é monitorar a operação para garantir que as métricas e os parâmetros que foram especificados no planejamento continuem válidos durante o funcionamento do sistema.
Mais concretamente, se você projetar uma linha que opera com uma certa velocidade média, aquele ônibus demora um certo tempo para ir do ponto inicial ao final. Com este dado, é possível garantir que a bateria do ônibus dure um certo número de viagens até a recarga de bateria na garagem da empresa.
Agora, se a velocidade média começar a cair e esse tempo de viagem aumenta, não se conseguirá fazer todas as viagens planejadas para a mesma carga. Assim, o ônibus vai ter que parar mais vezes na garagem para realizar o trabalho previsto para o dia e isso afeta a operação.
Por isso, a condição de operação precisa ser constantemente monitorada para garantir que os ônibus elétricos possam funcionar de acordo com o previsto.
O terceiro papel que eu entendo de como a análise de dados possa ajudar é dar mais transparência para o processo para que a população consiga acompanhar se estas metas de descarbonização e de introdução de alternativas limpas no transporte público estão sendo cumpridas. E, a partir disso, de uma certa forma pressionar o poder público e a todos os atores envolvidos a fim de manterem e cumprirem as metas.
Então, é preciso realizarem todas as ações necessárias para que as metas de redução de emissão sejam batidas. Acho que a transparência também é um ponto bastante importante para mostrar dados à população de como a política de eletrificação está tendo efeito, melhorando a qualidade do ar, algo benéfico para a população e para os passageiros. Ao mostrar tudo isso, ajuda também a todos se engajarem no cumprimento dessas metas e a cumprir os objetivos de redução de emissões do Brasil e também do mundo.
Fabiano: Muito bem. Quando falamos dessa busca em melhorar a qualidade do transporte utilizando todas essas ferramentas de análise de dados, precisamos lembrar que a cidade é um organismo vivo e que tem muitas outras frentes onde estes recursos tecnológicos possam colaborar. Como a Scipopulis tem proposto essa gestão de dados em outras áreas e rotinas nos centros urbanos?
Roberto: Sem dúvida, esse processo de redução de emissões do transporte vai muito além de uma simples troca de tecnologia do diesel para o ônibus elétrico. Por exemplo, você tem outras fontes de emissões no transporte, como os carros privados, transporte de mercadorias, diversas formas de transporte que acabam contribuindo para as emissões. Então, existem diversas outras medidas que têm de ser tomadas, por exemplo, a redução de viagens.
Diminuir a quantidade de quilômetros no deslocamento das pessoas ou diminuir o uso do automóvel e de caminhões para a distribuição de mercadorias é importante. E isso tem muito a ver com o uso do espaço da cidade e com a distribuição de oportunidades dentro da cidade.
Uma pessoa não sai do extremo sul da cidade de São Paulo para ir ao Centro porque ela quer: ninguém gosta de passar 2h no trânsito ou se deslocar 20, 30, 40 km por dia. As pessoas fazem isso porque são os locais onde as oportunidades estão concentradas. Há uma organização muito ruim das cidades com relação à concentração de oportunidades em alguns locais e isso acaba impactando com uma maior quantidade de viagens urbanas, gerando mais emissões relacionadas ao transporte.
Existem diversas medidas para colaborar com uma melhor organização da cidade e melhor uso do espaço, a partir de uma distribuição melhor das oportunidades. Há também o incentivo a forma sustentáveis de deslocamento: o transporte ativo – que é a caminhada –, o uso de bicicleta em troca de algum trecho de carro, enfim, isso tudo ajuda a diminuir a quantidade de emissões do transporte.
Estamos falando de uma integração de várias áreas da administração da cidade para distribuir melhor as oportunidades. É preciso levar, por exemplo, emprego, postos de saúde, escolas a diversas regiões para que a pessoa não precise se deslocar muito para ter acesso ao trabalho e serviços essenciais.
Na Scipopulis, estamos desenvolvendo um produto que ajude a cidade nessa tarefa, ao integrar dados de diversas outras verticais da gestão pública. Não só de transporte, mas também integrar dados de educação, saúde, meio ambiente e segurança pública para que o gestor público tenha cada vez mais essa visão integrada da cidade para que entenda que a decisão de criar uma escola em um certo local gera impacto em diversas outras áreas da cidade e diversos outros aspectos da vida do cidadão. Esta não é uma decisão que diz respeito apenas à educação.
Então, acho que a gestão da cidade do futuro vai passar muito por essa integração de dados. A cidade é um sistema complexo e cada mudança que você faz tem impacto em diversas outras áreas. E se você não tem esses dados integrados para medir o impacto de uma mudança na cidade, fica muito difícil conseguir progredir e melhorar a qualidade de vida da população, já que as iniciativas são integradas. O que vemos para o futuro é uma maior integração dos dados das diferentes áreas de gestão de uma cidade para melhorar a vida do cidadão, reduzir a necessidade de transporte e diminuir a quantidade de emissões geradas pelo transporte.
Fabiano: Maravilha. Bem, a gente vai encerrar aqui, mas ainda tenho mais uma pergunta que é relacionada à COP26. Qual é a sua expectativa com relação ao evento? As medidas que podem ser anunciadas lá devem impactar as empresas de tecnologia como a Scipopulis?
Roberto: Acho que a cada conferência dessas ficam mais claras e específicas as metas de redução de emissões de gases do efeito estufa. Então, a cada evento fica mais evidente o que os países têm que fazer, a atuação mais concreta dos governos para atingir os objetivos e evitar o superaquecimento do planeta, evitando as consequências que isso traria para diversas populações no mundo todo.
Começamos com metas muito abstratas e objetivos difíceis de mensurar. Mas a cada ano e evento eles ficam cada vez mais mensuráveis, mais concretos e claros. Quando se começou essa discussão, ninguém sabia muito o que fazer para reduzir as emissões e evitar o aquecimento global e as mudanças climáticas. Agora não. Então, acho que a consequência direta será que os governos vão agir ainda mais nessa agenda e os objetivos ficarão muito mais claros, com ações definidas para atingir a esses objetivos nos próximos anos.
Por exemplo, no Brasil, a descarbonização do transporte é algo que as cidades sabem que vão ter que fazer, mas há muito poucas agindo com metas claras e objetivas de como isso. A partir de agora, acredito que essa é uma área que vai avançar bastante nas administrações municipais. Vai ficar muito mais claro para cidades o que elas têm de fazer, como planejar ações concretas e realizá-las ao longo do tempo.
Eu espero que a COP26 avance sobre essas pautas ambientais para que fiquem muito mais claras as ações que precisam tomadas pelas cidades e que a gente consiga reduzir o impacto sobre a sociedade e o ser humano no planeta, evitando grandes catástrofes que seriam consequências naturais do aquecimento do aquecimento global.
Fabiano: Uma vez definida a pauta, Roberto, ficará muito mais fácil para o governante tomar as decisões e fazer os seus planejamentos. E isso tornará mais clara também a importância da tecnologia e da própria análise de dados para colaborar com as estratégias.
Roberto: O problema ambiental é um gigantesco, mas difícil de mensurar. As pessoas comparam um pouco com o hábito de fumar cigarros. Você sabe que faz mal, mas é um pouquinho por dia: não se acende um cigarro e fica doente em seguida. O impacto disso será sentido depois de vários anos. E é difícil você medir e trocar o prazer imediato do cigarro por uma perspectiva talvez futura de ficar doente. Mas acaba ficando e essa hora chega.
Da mesma forma, é difícil você mensurar o aquecimento global. Tem um pouco dessa característica, de que o impacto será sentido daqui a 10, 20 anos. Mas as medidas têm de serem tomadas agora! Porém, como você mede isso? Como convencer as pessoas a tomarem as medidas agora de um impacto que vai chegar lá na frente? Então, é preciso metas concretas, medir e ter um número de métricas, valores e tendências para que as pessoas vejam de forma clara, tornando mais concreto o impacto positivo dessas medidas.
Fabiano: Muito boa analogia. Bem, vamos precisar terminar a nossa conversa: mais uma vez, tivemos aqui Roberto Speicys, CEO e cofundador da Scipopulis, para conversar com a gente sobre “Como a análise de dados pode ajudar na descarbonização de transporte”. Roberto, muito obrigado mais uma vez por seu tempo e por compartilhar o seu conhecimento conosco.
Roberto: Imagina! Obrigado pela oportunidade, espero que o pessoal que está escutando tenha aprendido alguma coisa. É isso aí, vamos falar agora bastante de pautas ambientais e vai ser um tema de grande repercussão, com várias ações dos governos para atingir as metas de redução de emissões e melhorar a qualidade do meio ambiente para todos os cidadãos.
Fabiano: Muito bem, muito obrigado Roberto mais uma vez, e eu espero que você tenha gostado deste podcast. Curta e compartilhe este outros conteúdos relevantes que nós postamos sobre tecnologia aqui no canal greenTALKS, no blog Insights, no YouTube e também em nossas mídias sociais. Muito obrigado e até o próximo episódio.
